12 dezembro, 2012

Precisa -se de loucos

Precisa -se de loucos uns pelos outros!
Que em seus surtos de loucura espalhem alegria; com habilidades suficientes para agir como treinadores de um mundo melhor, que olhem a ética, respeito às pessoas e responsabilidade social não apenas como princípios organizacionais, mas como verdadeiros compromissos com o Universo.
Precisa-se de loucos de paixão, não só pelo trabalho, mas principalmente por gente, que vejam em cada ser humano o reflexo de si mesmo, trabalhando para que velhas competências dêem lugar ao  brilho no olhar  e a comportamentos humanizados.
Precisa-se de loucos por novas tendências, mas que caminhem na contramão da história, ouvindo menos o que os gurus tem a dizer sobre mobilidade de capitais,tecnologia ou eficiência gerencial e ouvindo mais seus próprios corações.
Precisa-se de loucos poliglotas que não falem inglês, espanhol, francês ou italiano, mas que falem a língua universal do amor que transcende toda a hierarquia, que quebra paradigmas; amor que cada ser humano deve despertar e desenvolver dentro de si e pôr a serviço da vida própria e  alheia; amor cheio de energia, amor do diálogo e da compreensão, amor partilhado e transcedental.
As Organizações precisam urgentemente de loucos, capazes de implantar novos modelos de gestão, essecialmente focados no SER, sem receio de serem chamados de insanos,que saibam que a felicidade consiste em realizar as grandes verdades e não somente em ouví-las.

23 outubro, 2012



Quando estou sem você, faço tudo ao mesmo tempo é o agora, não me imagino longe da vivacidade e energia.
Quando estou com você, não tenho pressa,quero todos os dias e o mar como meu quintal...

E quando volto para mim, lembro o quanto é bom estar assim te amando.

A pena é só poder estar, a cada vez, em um lugar!

Amo você,

CJ

21 setembro, 2012

Exames de rotina

A notícia pode vir de repente em um exame de rotina, aberto na página do laboratório na internet enquantose toma  um chocolate quente.
Não era uma doença incurável, não era um drama humanitário, não era nada que alterasse a ordem do mundo. Era só a pequena tragédia de todos nós depois dos 35. Comezinha e cotidiana. A tragédia de um homem comum, com uma vida comum, que sente a primeira fisgada do fim.

No percurso de uma vida, quando temos a sorte de ter uma existência longa, passamos por várias pequenas mortes e renascimentos. É importante que partes de nós morram para que outras possam nascer – ou apenas para que esses pedaços mofados de nossas crenças sobre nós ou da crença de outros sobre nós saiam do caminho. É triste quando alguém é uma coisa só a vida toda – perdendo a chance de acolher todos os outros de si. Quando alguém anda pela vida apertado em uma roupa que nunca lhe serviu direito, mas que foi vestida nele ou nela por seus pais ainda na infância, como se fosse o único modelo que lhe coubesse.

É importante que, em algum momento, de preferência mais cedo do que tarde, a gente descubra que essa roupa não serve – ou que apenas algumas partes servem e outras precisam ser jogadas fora, para que novas possam ser inventadas. É essencial que nos libertemos dos dogmas impingidos sobre nós para podermos criar uma vida que faça mais sentido – e para nos sentirmos livres para recriá-la o tempo todo. O olhar do outro sobre nós, a começar pelo dos nossos pais, às vezes é redenção, em outras é prisão, em geral é ambos.

Por isso me parece que uma vida é mais rica quando morremos e renascemos muitas vezes. Mas esta é a existência psíquica, é o que se passa em nossas porções invisíveis, naquela parte da nossa geografia que não se pode tocar com as mãos. Poucas coisas ou nenhuma são mais assustadoras do que ousar se libertar de um jeito de ser cujo funcionamento conhecemos. Porque ainda que esse jeito nos sequestre o desejo, nos parece mais seguro do que enfrentar o vazio de descobrir formas de viver mais próximas de nossos anseios. Mas, se tivermos essa coragem que anda de mãos agarradas com o medo, nós nos responsabilizamos pelas nossas escolhas, seguimos e criamos e morremos e renascemos.

 A rigor, começamos a morrer desde o nascimento. De fato, nosso declínio físico começa aos 20 e poucos anos, mas esses sinais podem ser ignorados. E são. Por volta dos 40 – um pouco depois, para quem tem mais sorte, um pouco antes, para quem tem mais azar –, recebemos a notícia da primeira morte que não podemos ignorar. A primeira morte do corpo.

 Não é uma mera mudança de hábitos, como médicos e nutricionistas tentam nos convencer em consultas, reportagens e sites da internet.

Corte  as feijoadas, o churrasco, a pizza, o hambúrguer, a batata frita, os pastéis, os bolos, os bolinhos, as tortas, os chocolates. Mas não só. Encerre a possibilidade de renovar a qualquer momento a memória de uma vida de afetos: a receita de bacalhau da mãe , a torta de frango com catupiry que só a sogra sabe fazer, o feijão gordo que a mulher prepara , a noite com o amigo de infância recheada de cumplicidade, chope e frituras.

Um mundo dentro do mundo morreu em um segundo. E a notícia dessa morte nos lembra o tempo todo de que é só a primeira das muitas que virão. “Tenho medo de morrer de repente”, pensamos.  “A vida não dá garantias”....
 Sabemos que é preciso aceitar essa morte, assim como todas que virão, com o excesso de perdas que ela contém. Em geral não se morre de uma vez só, mas aos poucos. E é o corpo que nos ensina a brutalidade dessa verdade, a finitude do físico versus a imortalidade da alma.




09 setembro, 2012

Humano...pobre humano

Toda pessoa não suficientemente realizada em si mesma tem a instintiva tendência de falar mal dos outros.
Qual a razão última dessa mania de maledicência?
É um complexo de inferioridade unido a um desejo de superioridade. Diminuir o valor dos outros dá-nos a grata ilusãode aumentar o nosso valor próprio.
A imensa maioria dos homens não está em condições de medir o seu valor por si mesma. Necessita medir o seu próprio valor pelo desvalor dos outros.
Esses homens julgam necessário apagar as luzes alheias a fim de fazerem brilhar mais intensamente sua própria luz.
Quem tem bastante luz própria não necessita apagar ou diminuir as luzes dos outros para poder brilhar.
Quem tem valor real em si mesmo não necessita medir o seu valor pelo desvalor dos outros.
Quem tem vigorosa saúde espiritual não necessita chamar de doentes os outros para gozar a consciência da saúde própria .
Portanto, cabe as pessoas lúcidas, boas e de bom senso, não dar ensejo para que o veneno da maledicência se alastre, infelicitando e destruindo vidas.
(Humberto Rohden)

17 junho, 2012

Ainda bem- MArisa Monte

Ainda bem
Que agora encontrei você
Eu realmente não sei
O que eu fiz pra merecer
Você

Porque ninguém
Dava nada por mim
Quem dava, eu não tava a fim
Até desacreditei
De mim

O meu coração
Já estava acostumado
Com a solidão

Quem diria que a meu lado
Você iria ficar
Você veio pra ficar
Você que me faz feliz
Você que me faz cantar
Assim

O meu coração
Já estava aposentado
Sem nenhuma ilusão
Tinha sido maltratado
Tudo se transformou
Agora você chegou
Você que me faz feliz
Você que me faz cantar
Assim

16 abril, 2012

A vida não começa aos 40

"Parece uma epidemia. Não paro de ouvir e de ler que “a vida começa aos 40”. A frase não é nova, talvez tenha até uns 40 anos... Hoje, porém, ela parece ter deixado o marketing publicitário para virar filosofia da vida cotidiana. E em bocas que costumam dizer coisas que valem a pena. De uns tempos para cá, atrizes e escritoras interessantes têm repetido esse slogan, depois de passar dos 40. Nesse verão, li várias vezes essa frase em revistas femininas diferentes, ditas por mulheres diferentes, mas incluídas no pacote do “bonita-e-bem-sucedida”... e com mais de 40.
Entendo que a frase é simpática. E bem intencionada. E tenha sido até revolucionária no passado recente. Afinal, mesmo durante boa parte do século XX acreditava-se que a vida acabava aos 40 – a vida das mulheres, pelo menos. Ou, pelo menos, acreditava-se que, depois dos 40, o mais emocionante que uma mulher poderia esperar seriam os netos (que, acredito, sejam mesmo algo bem emocionante). Entendo também que é uma conquista existirem protagonistas de novelas com mais de 40 anos e mulheres em todas as áreas criando depois dos 40. Receio, porém, que estejamos enfiando o nosso pé em uma nova armadilha. E, em vez de uma frase meio marqueteira, meio lugar comum, que se diz aqui e ali quando falta assunto, ao ser levada a sério torne-se uma sentença.
O que significa “a vida começa aos 40”? Fiz uma pequena pesquisa em blogs e revistas e parece que significa o seguinte: a vida começaria aos 40 porque as mulheres ainda estariam bonitas, já seriam donas de uma carreira consolidada e financeiramente estáveis, teriam passado por percalços suficientes para se sentirem mais confiantes e, então, sem as pressões e inseguranças dos 20 e até dos 30, estariam mais livres para inventar novos rumos para suas vidas – e novos rumos que estariam mais próximos de seus desejos.
Significava também que, aos 40, as mulheres já estariam com os filhos crescidos e, portanto, teriam superado certo peso da maternidade. Mas acho que essa parte do pacote já perdeu força, na medida em que hoje muitas mulheres estão justamente tentando engravidar ou com filhos pequenos ao completar 40 anos. Nesse sentido, o mais correto a afirmar nesses dias é que, em muitos casos, a vida dos filhos começa quando suas mães têm 40 anos. E acho que este é um bom tema para outro momento.
Por que eu desconfio da afirmação de que “a vida começa aos 40”? Primeiro, porque nela está implícito que existe uma espécie de “vida de verdade”, enquanto a outra, a que veio antes, seria uma vida menor. Eu acho que é preciso ter medo, muito medo, da tal da “vida de verdade”. Seja aos 40 ou em qualquer idade, a tal da “vida de verdade” é fonte de muito sofrimento desnecessário. Ela coloca nossas vidas imperfeitas – e tudo e todos que dela fazem parte – como sendo sempre insuficientes diante de alguma outra vida imaginária. Ou nos instala no modo de espera de algo extraordinário que ainda vai acontecer e nos arrancar do que interpretamos como uma mesmice aquém do que merecemos. A “vida de verdade” é uma grande mentira. E a história de que “a vida começa aos 40” a reforça. Nesse ritmo, talvez a vida não comece nunca. E acho que há gente demais – mulheres e homens – vivendo à espera de que a vida comece, sem reparar que ela já vai pelo meio.
Se formos levar na literalidade da letra que a vida começa aos 40, seria muito triste. Seria mesmo desesperador. Se, ao alcançar os 40 uma mulher chegasse à conclusão de que o que se passou antes foi apenas um preâmbulo para uma vida – e não a vida em si, com toda a sua quantidade de drama e de nadas – haveria um motivo bastante legítimo para se matar aos 40. Afinal, o que foi que você fez antes se não era vida o que estava acontecendo?
Mas, digamos que essa mulher hipotética seja intrépida o suficiente para pensar: “Oquei, tudo o que veio antes foi tempo perdido, ou apenas uma preparação para o que está por vir, mas agora a vida de verdade começa”. Nesse caso, ela também chegaria à conclusão de que seria uma existência muito curta. Com a expectativa de vida de 77 anos, segundo o último censo do IBGE, as brasileiras teriam aí, em média, uns 37 anos pela frente.
Nesses 37 anos, mesmo que essa mulher seja saudável como uma vaca de leilão, teria de lidar com problemas de saúde aqui e ali, depois aqui, ali e em toda parte. Teria de lidar com as letras que vão diminuindo de tamanho bem diante dos seus olhos. Teria de lidar com a perda progressiva da juventude. E teria de lidar com a velhice dos pais, com a sua própria, e também com a morte daqueles a quem ama. É muita coisa para lidar, não? Se além de tudo isso a vida estiver começando... coitadas de nós.
Ao defender que “a vida começa aos 40”, portanto, estamos nos lançando em um paradoxo lógico: “a vida começaria no mesmo momento em que chega à metade”. E não a qualquer metade, mas a uma metade que envolve declínio físico, perdas inescapáveis e termina em morte. Parece deprimente? Seria, se fosse só isso, mas há também muitas possibilidades interessantes em curso, se tivermos aprendido algo em algum momento anterior. Triste? Algumas vezes muito triste, com certeza, mas também engraçada, se já conseguirmos rir de nós mesmas, e com um monte de coisas para inventar e para experimentar – e outras que só nos resta aceitar. É a vida, com sua mistura de tragédia e de comédia e um bocado de espaços vazios e de repetições.
Despida de seu conteúdo revolucionário, que fazia sentido em décadas passadas, mas hoje não me parece que faça mais, a máxima de que “a vida começa aos 40” pode se tornar uma autossabotagem. Temos medo, quando chegamos aos 40, porque uma metade da vida já passou – e justamente a metade em que éramos jovens. Para as mulheres é de certo modo mais difícil porque a exigência de que pareçamos jovens é maior. E por causa dela muitas se lançam aos bisturis para adiar o inevitável, nem sempre com resultados satisfatórios. Sem falar nas injeções na testa, que de piada viraram coisa séria e dispendiosa desde a invenção do botox. Mas não acho que transformar nosso medo em autoafirmação seja uma boa ideia. Tipo: “Ah, que maravilha, cheguei aos 40 anos e agora começa a melhor época da minha vida!”. Soa meio bobo, não? Não é possível que 40 anos de vida não tenha nos permitido dizer algo mais instigante.
É preciso que a vida antes dos 40 tenha sido bem ruim para que o que venha depois seja tão melhor assim a ponto de se tornar a vida inteira. Se não foi tão ruim antes dos 40, também não é preciso temer que seja tão pior depois, a ponto de se tornar necessário gritar em público que os 40 estão sendo uma libertação ou uma epifania ou a abertura de “2001, uma odisseia no espaço”.
Como tudo nesse nosso mundo de mercadorias, o conteúdo revolucionário de ontem virou propaganda de hoje para nos vender um montão de produtos. E seria legítimo esperar que pelo menos nisso soasse algum tipo de sirene, já que a maior parte do que tentam nos vender nessa faixa etária onde “a vida começa” seja justamente rejuvenescimento. Contraditório, não? Acreditar que publicidade é filosofia, este é um passo que não precisamos dar.
Fico aqui pensando se não há também certa dose de vingança contra as mais jovens nessas reafirmações constantes da força da mulher dos 40 e dos 50 e além. Algo como: “Vocês têm juventude, corpinho e possibilidades, mas a vida de vocês não tem nenhum significado. A vida de verdade começa aos 40”. Ora, todas nós tivemos 20, e todas as que têm 20 hoje terão 40 e, com sorte, um dia passarão dos 70. Foi importante para mim aos 20 e depois aos 30 saber que existiam mulheres interessantes, criando vidas interessantes, depois dos 40, dos 50 e além. Hoje, perto de completar 46 anos, sonho em chegar aos 80 com uma vida tão significativa como a de Fernanda Montenegro ou como a de uma parteira chamada Jovelina que conheci numa reportagem no Amapá. Mas ao meu próprio modo.
Agora, se essas mulheres que criam coisas interessantes e por isso ganham espaço na mídia e por isso se tornam formadoras de opinião e por isso se tornam perfeitas não para si mesmas, mas para os anunciantes, tivessem feito pouco caso da minha vida de 20 para afirmar a sua de 40, 50 ou além, eu teria ficado muito decepcionada. Não por acreditar nelas, mas por não poder acreditar nelas.
A vida é o que temos e o que fazemos dela, com um pouco de tudo, em qualquer idade. Aos 40, percebemos que começamos a envelhecer. Não acho que devemos negar isso, mesmo porque não adianta. O que vamos dizer aos 50 ou aos 60? Que a vida começa de novo? Ué, mas ela não tinha começado aos 40? E aos 70, 80 ou 90, vamos “descobrir” que a vida começa no fim?
Não existe “vida de verdade” – só existe vida, que é o que está acontecendo agora, seja lá o que for. Acho que vale mais a pena aceitar que envelhecemos e descobrir um jeito de viver com isso. Não começando, mas continuando a criar a melhor vida possível, a melhor vida possível com os limites de cada uma, do jeito de cada uma. E com uma grande dose de generosidade com as nossas atrapalhações – e também com as de quem amamos –seja aos 20, aos 40 ou aos 70.
De minha parte, aos 20 anos eu estava tropeçando nos meus próprios pés e me perguntando o que e quem sou eu. Aos 40 e poucos continuo tropeçando nos meus próprios pés e me perguntando quem e o que sou eu. Não que não tenha descoberto e trilhado algumas pistas, mas é que elas vão se multiplicando e se alargando no percurso. O tempo escasseia, mas o número de perguntas aumenta, o que é um tanto ingrato.
Aos 20 anos, eu não sabia se queria ser jornalista ou bióloga ou garçonete em Amsterdã ou me matar. Aos 40 e poucos eu me confundo com escolhas mais subjetivas, algumas não consigo nem mesmo nomear. E me preocupo muito em não ser uma coisa só, como um daqueles gênios presos em uma garrafa que só realizam o desejo dos outros. Me esforço então para desfazer rótulos sobre mim mesma – e faço caretas para não ficar cristalizada em uma só imagem no espelho, o privado e o público. Nesse momento da vida, como já escrevi aqui, a gente pode descobrir que é tão importante se desinventar como foi um dia se inventar. Mas imagino que, bem perto da morte, ainda vou estar tropeçando em pés com joanetes e pensando: o que e quem sou eu?
Tenho uma amiga dez anos mais velha para quem pergunto todo ano, só para sacanear: Você ficou mais sábia? “Não”, ela sempre responde, “mas estou com uma ruga enorme na testa”. Eu também não fiquei, digo. Mas acho que ficamos ambas, porque rimos disso. Depois dos 40, o que posso afirmar é que a vida, pelo menos para mim, não começou. Continuei perdida, assaltada por perguntas e duvidando das respostas. Mas comecei a entender que esta é uma boa notícia."
Elaine Brumn

14 março, 2012

Você não merece nada

Ao conviver com os bem mais jovens, com aqueles que se tornaram adultos há pouco e com aqueles que estão tateando para virar gente grande, percebo que estamos diante da geração mais preparada – e, ao mesmo tempo, da mais despreparada.
Preparada do ponto de vista das habilidades, despreparada porque não sabe lidar com frustrações. Preparada porque é capaz de usar as ferramentas da tecnologia, despreparada porque despreza o esforço. Preparada porque conhece o mundo em viagens protegidas, despreparada porque desconhece a fragilidade da matéria da vida.
E por tudo isso sofre, sofre muito, porque foi ensinada a acreditar que nasceu com o patrimônio da felicidade. E não foi ensinada a criar a partir da dor.

Há uma geração de classe média que estudou em bons colégios, é fluente em outras línguas, viajou para o exterior e teve acesso à cultura e à tecnologia. Uma geração que teve muito mais do que seus pais.
 Ao mesmo tempo, cresceu com a ilusão de que a vida é fácil.
Ou que já nascem prontos – bastaria apenas que o mundo reconhecesse a sua genialidade.

Tenho me deparado com jovens que esperam ter no mercado de trabalho uma continuação de suas casas – onde o chefe seria um pai ou uma mãe complacente, que tudo concede.
 Foram ensinados a pensar que merecem, seja lá o que for que queiram.
E quando isso não acontece – porque obviamente não acontece – sentem-se traídos, revoltam-se com a “injustiça” e boa parte se emburra e desiste.

Como esses estreantes na vida adulta foram crianças e adolescentes que ganharam tudo, sem ter de lutar por quase nada de relevante, desconhecem que a vida é construção – e para conquistar um espaço no mundo é preciso ralar muito.
Com ética e honestidade – e não a cotoveladas ou aos gritos.
Como seus pais não conseguiram dizer, é o mundo que anuncia a eles uma novidade não lá muito animadora: viver é para os insistentes.

Por que boa parte dessa nova geração é assim?
Penso que este é um questionamento importante para quem está educando uma criança ou um adolescente hoje.
Nossa época tem sido marcada pela ilusão de que a felicidade é uma espécie de direito. E tenho testemunhado a angústia de muitos pais para garantir que os filhos sejam “felizes”.
Pais que fazem malabarismos para dar tudo aos filhos e protegê-los de todos os perrengues – sem esperar nenhuma responsabilização nem reciprocidade.

É como se os filhos nascessem e imediatamente os pais já se tornassem devedores.
Para estes, frustrar os filhos é sinônimo de fracasso pessoal.
Mas é possível uma vida sem frustrações?
Não é importante que os filhos compreendam como parte do processo educativo duas premissas básicas do viver, a frustração e o esforço?
 Ou a falta e a busca, duas faces de um mesmo movimento?
 Existe alguém que viva sem se confrontar dia após dia com os limites tanto de sua condição humana como de suas capacidades individuais?

Nossa classe média parece desprezar o esforço. Prefere a genialidade.
 O valor está no dom, naquilo que já nasce pronto.
Dizer que “fulano é esforçado” é quase uma ofensa.
Ter de dar duro para conquistar algo parece já vir assinalado com o carimbo de perdedor.
 Bacana é o cara que não estudou, passou a noite na balada e foi aprovado no vestibular de Medicina.
 Este atesta a excelência dos genes de seus pais.
Esforçar-se é, no máximo, coisa para os filhos da classe C, que ainda precisam assegurar seu lugar no país.

Da mesma forma que supostamente seria possível construir um lugar sem esforço, existe a crença não menos fantasiosa de que é possível viver sem sofrer.
De que as dores inerentes a toda vida são uma anomalia e, como percebo em muitos jovens, uma espécie de traição ao futuro que deveria estar garantido.
 Pais e filhos têm pagado caro pela crença de que a felicidade é um direito. E a frustração um fracasso. Talvez aí esteja uma pista para compreender a geração do “eu mereço”.

Basta andar por esse mundo para testemunhar o rosto de espanto e de mágoa de jovens ao descobrir que a vida não é como os pais tinham lhes prometido.
Expressão que logo muda para o emburramento.
E o pior é que sofrem terrivelmente. Porque possuem muitas habilidades e ferramentas, mas não têm o menor preparo para lidar com a dor e as decepções.
Nem imaginam que viver é também ter de aceitar limitações – e que ninguém, por mais brilhante que seja, consegue tudo o que quer.

A questão, como poderia formular o filósofo Garrincha, é: “Estes pais e estes filhos combinaram com a vida que seria fácil”?
 É no passar dos dias que a conta não fecha e o projeto construído sobre fumaça desaparece deixando nenhum chão.
Ninguém descobre que viver é complicado quando cresce ou deveria crescer – este momento é apenas quando a condição humana, frágil e falha, começa a se explicitar no confronto com os muros da realidade. Desde sempre sofremos.
E mais vamos sofrer se não temos espaço nem mesmo para falar da tristeza e da confusão.

Me parece que é isso que tem acontecido em muitas famílias por aí: se a felicidade é um imperativo, o item principal do pacote completo que os pais supostamente teriam de garantir aos filhos para serem considerados bem sucedidos, como falar de dor, de medo e da sensação de se sentir desencaixado?

Não há espaço para nada que seja da vida, que pertença aos espasmos de crescer duvidando de seu lugar no mundo, porque isso seria um reconhecimento da falência do projeto familiar construído sobre a ilusão da felicidade e da completude.
Quando o que não pode ser dito vira sintoma – já que ninguém está disposto a escutar, porque escutar significaria rever escolhas e reconhecer equívocos – o mais fácil é calar.
 E não por acaso se cala com medicamentos e cada vez mais cedo o desconforto de crianças que não se comportam segundo o manual.
Assim, a família pode tocar o cotidiano sem que ninguém precise olhar de verdade para ninguém dentro de casa.

Se os filhos têm o direito de ser felizes simplesmente porque existem – e aos pais caberia garantir esse direito – que tipo de relação pais e filhos podem ter?
Como seria possível estabelecer um vínculo genuíno se o sofrimento, o medo e as dúvidas estão previamente fora dele?
Se a relação está construída sobre uma ilusão, só é possível fingir.

Aos filhos cabe fingir felicidade – e, como não conseguem, passam a exigir cada vez mais de tudo, especialmente coisas materiais, já que estas são as mais fáceis de alcançar – e aos pais cabe fingir ter a possibilidade de garantir a felicidade, o que sabem intimamente que é uma mentira porque a sentem na própria pele dia após dia.
É pelos objetos de consumo que a novela familiar tem se desenrolado, onde os pais fazem de conta que dão o que ninguém pode dar, e os filhos simulam receber o que só eles podem buscar.
E por isso logo é preciso criar uma nova demanda para manter o jogo funcionando.

O resultado disso é pais e filhos angustiados, que vão conviver uma vida inteira, mas se desconhecem.
E, portanto, estão perdendo uma grande chance.
Todos sofrem muito nesse teatro de desencontros anunciados.
E mais sofrem porque precisam fingir que existe uma vida em que se pode tudo.
 E acreditar que se pode tudo é o atalho mais rápido para alcançar não a frustração que move, mas aquela que paralisa.

Quando converso com esses jovens no parapeito da vida adulta, com suas imensas possibilidades e riscos tão grandiosos quanto, percebo que precisam muito de realidade.
Com tudo o que a realidade é.
Sim, assumir a narrativa da própria vida é para quem tem coragem.
 Não é complicado porque você vai ter competidores com habilidades iguais ou superiores a sua, mas porque se tornar aquilo que se é, buscar a própria voz, é escolher um percurso pontilhado de desvios e sem nenhuma certeza de chegada.
É viver com dúvidas e ter de responder pelas próprias escolhas.
Mas é nesse movimento que a gente vira gente grande.

Seria muito bacana que os pais de hoje entendessem que tão importante quanto uma boa escola ou um curso de línguas ou um Ipad é dizer de vez em quando: “Te vira, meu filho. Você sempre poderá contar comigo, mas essa briga é tua”.
Assim como sentar para jantar e falar da vida como ela é: “Olha, meu dia foi difícil” ou “Estou com dúvidas, estou com medo, estou confuso” ou “Não sei o que fazer, mas estou tentando descobrir”.

Porque fingir que está tudo bem e que tudo pode significa dizer ao seu filho que você não confia nele nem o respeita, já que o trata como um imbecil, incapaz de compreender a matéria da existência.
É tão ruim quanto ligar a TV em volume alto o suficiente para que nada que ameace o frágil equilíbrio doméstico possa ser dito.
Agora, se os pais mentiram que a felicidade é um direito e seu filho merece tudo simplesmente por existir, paciência.
 De nada vai adiantar choramingar ou emburrar ao descobrir que vai ter de conquistar seu espaço no mundo sem nenhuma garantia.
O melhor a fazer é ter a coragem de escolher.
 Seja a escolha de lutar pelo seu desejo – ou para descobri-lo –, seja a de abrir mão dele. E não culpar ninguém porque eventualmente não deu certo, porque com certeza vai dar errado muitas vezes.
 Ou transferir para o outro a responsabilidade pela sua desistência.
Crescer é compreender que o fato de a vida ser falta não a torna menor.
 Sim, a vida é insuficiente.
Mas é o que temos.
E é melhor não perder tempo se sentindo injustiçado porque um dia ela acaba.


Texto de Eliane Brum - jornalista, escritora e documentarista. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem. Atualmente é colunista da Revista Época .

Tempo e as sensações

Nossa sensibilidade é capaz de sentir as coisas no mundo.
Nosso entendimento é a capacidade de pensar sobre as coisas.
Entre sentir e entender vem o tempo, mas não podemos
experimentar o tempo em si; diretamente, em vez disso
experimentamos o tempo por meio das coisas que se
movem, mudam ou permanecem iguais.
Sendo assim sentimos saudades porque queremos reviver
um tempo em que sentimos e experimentamos o
sublime.
Da mesma forma ao sentirmos o presente
enxergamos nele o que nós mesmos colocamos
lá, o nosso íntimo FICA projetado na
percepção que temos do mundo.

13 fevereiro, 2012

A tirania do fraco

Se um fraco está pendurado na sua vida, o mais provável é que ele não seja tão fraco quanto você está pensando.
Nada pesa mais do que um fraco cravado na nossa jugular.
Dele a gente se queixa e lamenta. Dele a gente teme que privado do nosso apoio se mate, se deprima.
“Se eu largar dela, ela morre”, diz um amigo para outro.
Há anos, este tem sido seu refrão e sua verdade. Uma verdade confirmada pelos prantos convulsivos da mulher no princípio do casamento, às primeiras sugestões de separação. Sacramentada pelos acidentes domésticos que ela sofria eloqüentemente a cada novo período depressivo, acalmado pelos tranqüilizantes excessivos que fazia questão de tomar e alardear. E coroada por duas tentativas de suicídio....
 Um quadro clássico, com excessos barrocos.
Ele realmente é forte, bonito, rico, bem-sucedido. Enfim, um daqueles grandes homens à sombra espessa que ele projeta se abriga apenas aquela mulherzinha de nada, delgada, fraquinha, dependente. Tão fraquinha e dependente, que mantém o homão preso, amarrado ao pé da cama matrimonial.
Ela já desistiu de se queixar. Ficou estabelecido que não irá embora nunca. Ela, embora sorva de canudinho sua lenta infelicidade, se sente segura. Quando chegar a hora fará até uma operação plástica, para apresentar-se bem jovem às bodas de prata. E todos louvarão a longevidade daquele casamento.

Aí está como fraqueza de uma pessoa pode escravizar outra por toda a vida.
Mantendo o mesmo cenário e e variando os atores, ou  mudando a angulação da câmara são  inúmeras as situações de tirania emocional entre pais e filhos, marido e mulher, chefe e empregado, irmãs e irmãos, onde quer q haja uma relação em desiquilíbrio ,a trama se repete.
Qualquer um que tenha um olhar e percepção mais aguçado identifica essas relações nada saudáveis.

“eu sou tudo para ela”, me confidenciou certa vez o belo amigo, quando eu ainda tinha paciência de ouvir suas confidências conjugais. Achei eloqüente e ingênuo.
 Está aí uma coisa que merece reflexão, alguém que é tão tudo para outro, a ponto desse outro não ser mais ninguém.
“Você entende”, ele me explicava confiante, “eu é que trago amigos pra casa, que recebo os convites, que ganho dinheiro. Eu que animo a vida dela. Sem mim, ia ser um deserto”. Isso ele me dizia quase tentando racionalizar o porquê de tanta dependência.
E sem se perguntar nem por um minuto, de que modo a vida dela havia ficado tão árida.
Não é fácil descobrir. Começa que ela não é brasileira. Hoje já podemos dizer que seja, mas não era quando se conheceram, em Londres.
Ela era canadense, e estava fazendo um curso de teatro. Sua vida, naquele momento, estava preenchida por uma porção de amigos, a ilusão de uma vocação, uma dosezinha de narcisismo, a rotina de um aprendizado, e sonhos de glória...ele apareceu, e acabaram casando.
Aparentemente, ele gostava de sua veia teatral, do ambiente de boêmia em que ela circulava. Prometeu que no Brasil ela continuaria, que faria sua carreira. E estava de boa fé. Ambos estavam. Mas ela não falava português, não conhecia o ambiente teatral, teve o primeiro filho e foi ficando presa em casa, anevoando aos poucos os sonhos. E enquanto isso ele subia.
Está certo, ela provavelmente não tinha talento para ser nenhuma Fernanda Montenegro. Mas é fato que tinha, no começo de tudo, algo mais na sua vida, do que apenas ele.
Está certo, que ele também não é nenhum dragão seqüestrador de donzelas. Ele não a trancou em casa. Mas é fato que não a ajudou a criar situações para ela sair, e que aos poucos, até por culpa de tê-la tirado do seu ambiente, foi respondendo com força cada vez mais protetora ao progressivo enfraquecimento dela.

DÊ-ME SEUS CANINOS, QUE EU FORNEÇO A JUGULAR

As pessoas não se escolhem por acaso. Isso é fundamental para a gente entender como funciona essa suposta tirania do fraco. Nem as pessoas se escolhem apenas por suas virtudes. As pessoas se escolhem com grande discernimento, por suas virtudes e seus defeitos, em igual, ou semelhante, proporção.
Meu amigo não casou com sua mulher somente porque um dia a viu andando em Trafalgar Square e achou suas pernas bonitas. Casou porque farejou nela a fraqueza, aquela fraqueza exata com que calçaria seu simpático egocentrismo. Nem ela o preferiu a tantos outros pelo brilho tropical dos seus olhos. Mas sim porque aquele forte a abrigaria bem, tirando-a da lição da vida.

Ninguém é vítima de ninguém. Somos, eventualmente, vítimas de esquemas que nós próprios armamos, inconscientemente, e de parceria.
Não podemos esquecer que uma escolha amorosa pressupõe reciprocidade.
Como diz Jean- G. Lemaire, francês terapeuta de casais: “Para que um casal aconteça, e dure, é necessário que os dois parceiros encontrem nessa ligação vantagens no plano psicológico”. Não basta, portanto, que só um satisfaça suas necessidades internas, ou encontre no outro identificação. É preciso que o outro também esteja bem alimentado psicologicamente.

Freud, em seu Três Ensaios,  tratou do problema da escolha, que segundo ele se processa em função do apoio, da escora que o parceiro pode dar. Escolhe-se para preencher necessidades. A este tipo de escolha, o próprio Freud acrescentou mais tarde, no livro Introdução ao Narcisismo, a escolha baseada na relação que cada um tem consigo mesmo, a que ele chamou: “escolha do objeto narcísico”. Assim, amaríamos:
a) O que somos.
b) O que fomos.
c) O que gostaríamos de ser.
d) A pessoa que foi uma parte de nós mesmos.
E a estas categorias Freud ainda acrescentou “a qualidade que gostaríamos de ter”. Trata-se, portanto, de escolher alguém que corresponde à imagem ideal que fazemos de nós mesmos, uma espécie de escolha por espelho melhorado.
Essas teorias foram depois enriquecidas por outras, completadas por novas visões. Mas já assim, usadas por nós sem qualquer pretensão de requinte científico, dão pano para mangas.

No caso do casal de que falava, por exemplo, é bastante óbvio que ela ama nele justamente a força, o brilho que a esmagam. Afinal, embora sem ser profissional dos palcos, ele é um grande ator na comédia da vida, sempre sob os holofotes do sucesso, sempre falando, como quem conhece bem suas falas, para um público atento. Ele é tudo o que ela gostaria de ser, é como ela se idealizava quando o conheceu.
Mas ele, onde se identifica com aquela pessoa apagada, dependente? Aí é que está o lado menos aparente da questão. Ele se identifica justamente com essa falta de luz, porque todo forte gostaria de ser fraco.
Ser superforte o tempo todo, dominante o tempo todo, brilhante o tempo todo, é um cansaço só suportável por quem não tem outra saída.

Lembro de um relato que li sobre um paciente em terapia contando que no seu  tempo de forte da família sonhava com desmaios. No sonho, alguma coisa dramática ou assustadora acontecia, e , pum, apagava. Essa possibilidade de sair de cena na hora agá, e deixar que outro resolvesse o problema lhe parecia encantadora. Sobretudo porque sabia que isso nunca aconteceria na vida real em momentos de crise, quando jamais se permitiria algo mais do que sangue frio.

É o típico desabafo de forte, do tipo: que bom seria largar tudo, jogar as responsabilidades às traças, virar irresponsável eterno.
Mas os fortes não podem.
 Desde cedo seu papel foi escolhido e imposto, em sua imaginação, como o único capaz de atrair o amor dos outros, a admiração de que tanto necessitam.
Abrir mão dele seria, ainda que imaginariamente, ser desamado.
Portanto, quando digo que o forte gostaria de ser fraco, estou dizendo que o forte gostaria de ser amado sem precisar despender tanto esforço, amado até por seus defeitos.
E tem mais. Assim como o fraco ama no forte a força que ele próprio guarda sem uso dentro de si (a moça, aquela, até aparentava alguma, antes de casar), o forte também ama e protege no fraco a mesma fraqueza que esconde em si com tanto cuidado.

NINGUÉM FAZ TIRANIA SOZINHO

Com isso tudo não estou querendo negar que os fracos existem, muito menos que sempre exercem tirania sobre os outros.
Estou apenas mostrando que se trata de uma tirania consentida e fomentada.

Segundo a terapeuta americana Marilyn Gilchrist, a fraqueza pode ter sua origem infantil na relação excessivamente protetora dos pais. Estes, superprotegendo a criança, estão, ao mesmo tempo, cultivando sua dependência, e negando suas capacidades individuais. Com isso, a auto-estima pode ficar seriamente danificada para o resto da vida. A tendência será então procurar parceiros fortes, que assumam o papel inicialmente representado pelos pais.
Mas o mesmo resultado final pode advir de pais negligentes ou ausentes, pois uma criança que não recebeu suficiente amor pode transformar-se num adulto eternamente carente.
Eu acrescentaria ainda uma outra possibilidade. A de que pais que depositam nos filhos expectativa excessiva também correm o risco de enfraquecê-los. Sentindo-se incapaz de preencher sonhos tão maiores do que ela, a criança passa a sentir-se incompetente, negando-se a participar ativamente da luta da vida.

Desde cedo, o fraco descobre que é justamente através de seu ar desamparado que recebe afeto e proteção. Para cada fraco há um forte disponível. E assim ele descobre também que não vale a pena fortificar-se. Pior, passa a identificar seu próprio fortalecimento com a perda de afetos.
A mulher do meu amigo bem que gostaria de tornar-se forte. Mas, na teoria. Na prática, está certa de que ele a largaria se isso acontecesse (e é quase seguro que a largaria mesmo, pois estaria desfeito o laço neurótico que os amarra).
 E, como ela ainda não está forte, acha que não sobreviveria sem ele. Razão pela qual desiste de se fortalecer.
O círculo vicioso está fechado, com ela dentro.

Entretanto, não é só o parceiro amoroso que é vítima e reforço da tirania do fraco. De forma mais indireta, todo o entourage de amigos e parentes participa do esquema.
Dou um exemplo, e é autêntico, razão pela qual omito nomes. Homem inteligente, bem dotadíssimo. Todos o amam. Mas de alguma maneira, até velada, ele é um fraco. Tem uma tia. Nem pai, nem mãe que, enquanto vivos, viam nele o deus da família. E é à tia que ele sempre recorre. Para pedir algum dinheiro emprestado, para resolver algum problema pendente, porque precisa de uma assinatura. Não é um marginal, não, absolutamente, é solto, filósofo, poeta. Vive de fazer música, quando faz. Dá tudo o que tem, toma dos outros quando precisa. E todos dão. A tia que se queixa, os amigos que comentam, todos estão sempre prontos, e com prazer, a preencher suas necessidades.
A tia lucra com isso, na medida em que se sente indispensável, logo ela, solteira sem filhos, que sem a dependência do sobrinho amargaria talvez um sentido de inutilidade. Os amigos também lucram. O poeta carente permite que eles usufruam de um sentimento de generosidade.
Neste quadro, por que romperia o poeta com um esquema tão bem azeitado e lucrativo para todos? Onde encontraria forças – ele que não as tem – para sair da dependência? Depois de alguns tropeços e auxílio terapêutico ele se libertou do círculo vicioso, afinal não é só em hollywood que temos finais felizes, na vida real com um pouco de esforço todos temos capacidades para conseguir.

PARA ACABAR COM O FRACO, O MELHOR É MATAR O FORTE

O que nos alivia, na vida é que podemos sempre quebrar os esquemas. No caso dele, houve, acredito, um trabalho inconsciente em duas etapas.
Primeiro decidiu viver na medida que considerava sua, e não naquela alucinatória estabelecida pelos pais e tia.
Saiu da estratosfera.
Segundo, meteu-se num esquema de vida familiar em que as pequenas e amorosas ajudas dos amigos já não seriam suficientes.
A continuar vivendo como vivia escorado por amigos e tia, as escoras teriam que ser tão relevantes, que nem uns nem outra as forneceriam mais de boa vontade. O sistema de proveito geral estava rompido.
E a partir daí ele foi obrigado, se obrigou, a responsabilizar-se por ele mesmo. E voou livre.
Livres podem voar todos, fracos opressores e oprimidos, fortes tiranizados e tiranos, desde que trabalhem para isso.
Acho que o primeiro passo está na transformação do lamento. Se o forte parar de se vitimizar – e é engraçado notar que, neste papel, ele assume quase indisfarçadamente o lugar do fraco, em vez de dizer “não posso porque senão o outro morre”, perguntar “será que o outro morre mesmo?” pode obter respostas curiosas.

Poderá depois refletir sobre outra coisa: o fraco não exerce sua tirânica fraqueza com qualquer um, ele escolhe muito bem os alvos porque sabe que um alvo errado não acataria suas chantagens, pularia fora imediatamente. Cabe ao forte perguntar-se por que ele é um alvo tão perfeito.
Há mais uma série de perguntas muito proveitosas no processo de libertação: será que o fraco que protegemos tanto, à custa da nossa própria liberdade, está lucrando com isso mais do que perdendo?
 É bom o que lhe fazemos?

O mais importante, porém, é que de fato a gente queira se livrar desse jogo que, embora parcialmente, nos esmaga.
A maioria dos fortes que quer se libertar de fracos tenta fazê-lo através de modificação do fraco. É sempre mais fácil, ou assim acreditamos, modificar os outros. Mas mudar o fraco de nada adianta se não houver também mudança do forte.
A melhor maneira de fazer com que o fraco tire os dentes da nossa jugular é lutar contra nosso desejo de oferecê-la.
Se há algo a modificar, podemos começar por nós mesmos, por essa necessidade de afirmar nosso valor através de doações constantes. Ou por nosso prazer em ser tudo o que a “caixa” do outro quer, ...... ou, ou, ou....

Assim, estaremos colaborando na transformação do fraco.
 Pois se a escolha é um jogo de reciprocidade, e se a necessidade de um se altera, forçosamente deverá se alterar a do outro. Ou ocorrer a ruptura.
Essa ruptura de que tanto fugimos, mas que, no fundo, pode significar a libertação dos dois, e seu futuro crescimento.

07 fevereiro, 2012

O Cativeiro - Eliane Brum

O Zoológico de Sapucaia do Sul abrigou um dia um macaco chamado Alemão. Em um domingo de sol, Alemão conseguiu abrir o cadeado e escapou. Ele tinha o largo horizonte do mundo à sua espera. Tinha as árvores do bosque ao alcance de seus dedos. Tinha o vento sussurrando promessas em seus ouvidos. Alemão tinha tudo isso. Ele passara a vida tentando abrir aquele cadeado. Quando conseguiu, virou as costas. Em vez de mergulhar na liberdade, desconhecida e sem garantias, Alemão caminhou até o restaurante lotado de visitantes. Pegou uma cerveja e ficou bebericando no balcão. Os humanos fugiram apavorados.
Por que fugiram?
O macaco havia virado um homem.
O perturbador desta história real não é a semelhança entre o homem e o macaco. Tudo isso é tão velho quanto Darwin. O aterrador é que, como homem, o macaco virou as costas para a liberdade. E foi ao bar beber uma.
Um zoológico serve para muitas coisas, algumas delas edificantes. Mas um zoológico serve, principalmente, para que o homem tenha a chance de, diante da jaula do outro, certificar-se de sua liberdade. E da superioridade de sua espécie. Pode então voltar para o apartamento financiado em 15 anos satisfeito com a vida. Abrir as grades da porta contente com seu molho de chaves e se aboletar no sofá em frente à TV. Acorda na segunda-feira feliz para o batente. Feliz por ser homem. E por ser livre.
Há duas maneiras de se visitar um zoológico: com ou sem inocência. A primeira é a mais fácil. E a única com satisfação garantida. A outra pode ser uma jornada sombria para dentro do espelho. Sem glamour e também sem volta.
Acompanhe, se quiser.
O babuíno sagrado tem um nome comum. Beto. À espreita, lá onde os olhos se misturam com a mente, há o mais perigoso tipo de fúria. A da importância. Beto dá voltas e mais voltas na jaula, esmurra as grades. Atira comida e fezes nos visitantes. Espanca a companheira se ela não faz tudo o que ele quer. Não admite que emita um som sem a sua permissão. Não deixa que arrede pé sem a sua complacência. Se o faz, Beto cobre-a de tapas. Se a tiram de perto dele, Beto piora. Começa a arrancar pedaços do próprio corpo. Durante as crises, Beto toma dez miligramas de Valium por dia.
Os tigres-de-bengala são reis de fantasia. Têm voz, possuem músculos, são magníficos. Mas nascidos em cativeiro, já chegaram ao mundo sem essência. São um desejo que nunca se tornará. Adivinham as selvas úmidas da Ásia, mas nem sequer reconhecem as estrelas. Quando o sol escorrega sobre a região metropolitana, são trancafiados em furnas de pedra, claustrofóbicas. De nada servem as presas a caçadores que comem carne de cavalo abatido em frigorífico. De nada serve a sanha a quem dorme enrodilhado, exilado não do que foi, mas do que poderia ter sido. E que jamais será.
Anos atrás, um de seus bisavôs galgou a escada do tratador e espiou para além dos muros. Foi o mais longe que um deles chegou. São poderosos, os tigres-de-bengala. Mas quando chega a hora de serem confinados na caverna escura de sua escravidão, viram as costas para a Lua que aponta como promessa e marcham para a jaula. Alquebrados, submissos, como o mais vil animal da floresta.
A ursa-de-óculos é chamada de Peposa. Como se brinquedo fosse. O filho se chama Rayban, também muito engraçadinho. Quando nasceu Rayban, ela fez o que as mães costumam fazer: ensinou a ele a arte da resignação. Pegou-o pela orelha e carregou-o até as entranhas da furna na hora marcada. Hoje, Rayban vai por sua conta. Mas, todos os dias, Rayban desafia a mãe, se esgueira e testa o cadeado. Sem jamais ter aspirado o perfume gelado da cordilheira de seus ancestrais, Rayban não adivinha o que há do outro lado. Mas intui. E por ser criança ainda não desistiu de buscar.
Pinky vive só. Os outros elefantes, Nely e Mohan, caíram no fosso e sucumbiram. O fosso é a prisão dos elefantes. Mohan viveu seis anos acorrentado porque o cativeiro de sua espécie ainda não estava pronto. Quando o soltaram, durou três meses. Morreu tentando alcançar a liberdade. Ou apenas um dos cães que perambulam por lá e são achados aos pedaços. Dos três, Nely sempre foi a mais indomável. Dezenove anos atrás, matou um visitante. Um mineiro de Criciúma que comemorava a aposentadoria. Recém-liberto da solidão trevosa das minas de carvão, ele montou sobre Nely. Ela o derrubou sobre o chão e esmagou sua cabeça. Tão parecidos em sua tragédia, a elefanta e o homem.
Foram três as vezes em que Nely mergulhou no fosso. Numa delas, perdeu parte da barriga e uma mama na queda. Não desistiu. Morreu na terceira, tentando. Como nunca esquece, a elefanta Pinky assimilou o exemplo. E convenceu-se de que implacável é a punição para quem ousa dar um passo além do permitido.
A revelação dessa visita subversiva ao zoológico é que, no cativeiro, os animais se humanizam. O cárcere lhes arranca a vida, o desejo e a busca. E mais e mais vão se parecendo com os homens que os procuram na certeza de um álibi. Perigosa é a pergunta.
O que aconteceria se você encontrasse a chave do cadeado invisível de sua vida? O que aconteceria se você saltasse sobre o fosso de sua rotina? O que aconteceria se você desse o passo da elefanta?
Bem, talvez seja melhor caminhar até o balcão e beber uma.

16 janeiro, 2012

Por que as pessoas falam tanto?

"Uma vez passei dez dias num retiro de meditação vipássana, no interior do Rio de Janeiro, para fazer uma reportagem para ÉPOCA. Havia muitas regras. Uma delas era o silêncio. Por dez dias era proibido falar. Também devíamos evitar olhar para as outras pessoas. O objetivo era silenciar a mente até que não houvesse nenhum ruído também dentro de nós. Foi uma experiência fantástica, que me mudou para sempre. Nunca antes estive tão em mim. E nunca depois voltei a estar.

O silêncio e um progressivo mergulho interno, em vez de me alienar do mundo, me conectaram a ele de um modo até então inédito para mim. Eu sentia cada segundo, por que eles demoravam a passar. Percebia o vento e as nuances das cores do céu e das folhas das árvores em detalhes. Olhava, cheirava, ouvia e tocava o mundo como se tudo fosse novo. Cada centímetro de terra era capaz de me ocupar por minutos. Sem palavras, a realidade me alcançava com mais força. Finalmente eu não apenas compreendia, mas vivia a poesia de Alberto Caeiro: “Sinto-me nascido a cada momento para a eterna novidade do mundo”. Eliane Brum

Antes que alguém tenha ideias, experimentei tudo isso sem nenhuma droga. Nenhuma mesmo. Não podíamos tomar álcool, fumar ou ingerir qualquer medicamento, nem mesmo aspirina. Minha droga era a lucidez. Naqueles dez dias, ouvi com mais clareza a mim mesma. E passei a escutar melhor o mundo em que vivia. Senti que finalmente estava no mundo. Eu era.

No décimo dia, voltamos a falar. O retiro acabaria no dia seguinte e precisávamos nos preparar para retornar a uma realidade cotidiana de ruídos e demandas excessivas. Lembro que eu não queria falar. Fiquei assustada quando todo mundo começou a falar ao mesmo tempo. Percebi que a maioria do que se dizia nunca deveria ter sido dito. Sobrava.

Uma parte eram fofocas que haviam sido guardadas por dias. E que poderiam ter ficado impronunciadas para sempre. Percebi, principalmente, que depois de dez dias de silêncio muitas de nós não queriam ouvir. Só falar. Poucas eram aquelas que realmente desejavam escutar a experiência da outra, a voz da outra. A maioria só queria contar da sua. Não tinham sentido falta de outras vozes, apenas do som da sua. Dez dias de silêncio não tinham sido suficientes para acabar com nossa surdez à voz alheia.

A reportagem foi publicada, com o título de “O inimigo sou eu”. Eu segui, guardando em parte o que aprendi lá. E tenho sentido falta daqueles dez dias de silêncio, agora que aumenta em níveis quase insuportáveis a poluição sonora dentro e fora de mim.
Acho que nunca escutamos tão pouco. E talvez por isso nunca fomos tão solitários. Quando faço palestras sobre reportagem, os estudantes de jornalismo costumam perguntar o que devem fazer para se tornarem bons repórteres. Minha resposta é sempre a mesma: escutem. Acredito que mais importante do que saber perguntar é saber escutar a resposta. Não apenas para ser um bom jornalista, mas para ser uma boa pessoa. Escutar é mais do que ouvir. Como repórter e como gente esforço-me para ser uma boa “escutadeira”.

É a escuta que nos leva ao mundo. E é a escuta que nos leva ao outro. Quando não escutamos, nos tornamos solitários, mesmo que estejamos no meio de uma festa, falando sem parar para um monte de gente. Condenamo-nos não à solidão necessária para elaborar a vida, mas à solidão que massacra, por que não faz conexão com nada. Não escutamos nem somos escutados. Somos planetas fechados em si mesmos. Suspeito que essa é uma época de tantos solitários em grande parte pela dificuldade de escutar.

Basta observar. As pessoas não querem escutar, só querem falar. Depois de muita observação, classifiquei cinco tipos básicos de surdos. Há aqueles que só falam e pronto. Emendam um assunto no outro. Fico prestando atenção para detectar quando respiram e não consigo. Acho que inventaram um jeito de falar sem respirar. E ganhariam mais dinheiro se entrassem em algum concurso de tempo sem oxigênio embaixo d’água. Aí, pelo menos, ficariam quietos.

Existem aqueles que falam e falam e, de repente, percebem que deveriam perguntar alguma coisa a você, por educação. Perguntam. Mas quando você está abrindo a boca para responder, já enveredaram para mais algum aspecto sobre o único tema fascinante que conhecem: eles mesmos.

Há aqueles que fingem ouvir o que você está dizendo. Você consegue responder. Mas, quando coloca o primeiro ponto final, percebe que não escutaram uma palavra. De imediato, eles retomam do ponto em que haviam parado. E não há nenhuma conexão entre o que você acabou de dizer e o que eles começaram a falar.
Existem aqueles que ouvem o que você diz, mas apenas para mostrar em seguida que já haviam pensado nisso ou que sabem mais do que você, o que é só mais um jeito de não escutar.

Há ainda os que só ouvem o que você está dizendo para rapidamente reagir. Enquanto você fala, eles estão vasculhando o cérebro em busca de argumentos para demolir os seus e vencer a discussão. Gostam de ganhar. Para eles, qualquer conversa é um jogo em que devem sempre sair vitoriosos. E o outro, de preferência, massacrado. Só conhecem uma verdade, a sua. E não aprendem nada, por acreditarem que ninguém está à altura de lhes ensinar algo.
É claro que há um mix das várias espécies de surdos. E devem existir outras modalidades que você deve ter detectado, e eu não. O fato é que vivemos num mundo de surdos sem deficiência auditiva. E uma boa parte deles se queixa de solidão.
É um mundo de faladores compulsivos o nosso. Compulsivos e auto-referentes. Não conheço estatísticas sobre isso, mas eu chutaria, por baixo, que mais da metade das pessoas só falam sobre si mesmas. Seu mundo torna-se, portanto, muito restrito. E muito chato. Por mais fascinantes que possamos ser, não é o suficiente para preencher o assunto de uma vida inteira.

Num ótimo artigo, intitulado Escutatória, o escritor Rubem Alves diz: “Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular”.

Quando não escutamos o mundo do outro, não aprendemos nada. Acontece com o chefe que não consegue escutar de verdade o que seu subordinado tem a dizer. A priori ele já sabe – e já sabe mais. Assim como acontece com a mulher que não consegue escutar o companheiro. Ou o amigo que não é capaz de escutar você. E vice-versa.

Tornamo-nos muito sozinhos no gesto de não escutar. Em Revolutionary Road (Sam Mendes, 2008), traduzido para as telas de cinema do Brasil como “Foi apenas um sonho”, a cena final é a síntese dessa relação simbiótica entre surdez e solidão. Não a surdez causada pela deficiência auditiva, mas essa outra de que falamos, esta que é mais triste por ser escolha. Quem viu, não esqueceu. Quem não viu, pode pegar o dvd em qualquer locadora. Essa cena final vale por alguns milhares de palavras.

Sempre pensei muito sobre por que as pessoas falam tanto – e por que têm tanta dificuldade de escutar. Qual é a ameaça contida no silêncio? O que temem tanto ouvir se calarem a sua voz por um momento? Por que precisamos preencher nosso mundo - inclusive o interior - com tantos ruídos?
Acho que cada um de nós poderia parar alguns minutos e fazer a si mesmo estas perguntas.

Percebo também que há uma pressão para que nos tornemos falantes. Ser falante supostamente seria uma vantagem no mundo, especialmente no mundo do trabalho. Mesmo que você não diga nada de novo, mesmo que você repita o que o chefe disse com outras palavras. Mas falar, qualquer coisa, é marcar presença, é uma tentativa de garantir-se necessário. E ser quieto, calado, é visto como um tipo invisível de deficiência. Como se lhe faltasse algo, palavras. Mas será que as palavras estão ali, nessa falação desenfreada? Ou melhor, será que quem fala está realmente naquele discurso? Tenho dúvidas.

Por qualquer caminho que se possa pensar, me parece que o silêncio soa ameaçador. Em parte, pelo que ele pode dizer sobre nós. Enchemos nossa vida de barulho, da mesma forma que atulhamos nossos dias de tarefas, com medo do vazio. Tarefas em uma agenda cheia constituem outro tipo de ruído. E o vazio também é uma forma de silêncio.

Em rasgos de intolerância, achava que os falantes compulsivos eram apenas muito chatos e muito egocêntricos. Que as pessoas não escutavam – o silêncio e o outro – por prepotência. Mas acredito que é bem mais complicado que isso.

Há dois livros muito interessantes que pensam sobre a escuta. A Hermenêutica do Sujeito, de Michel Foucault (Martins Fontes), e Como Ouvir (Martins Fontes), um livrinho pequeno e precioso de Plutarco. Eles mostram que escutar é se arriscar ao novo, ao desconhecido. Na audição, mais do que em qualquer outro sentido, a alma encontra-se passiva em relação ao mundo exterior e exposta a todos os acontecimentos que dele lhe advêm e que podem surpreendê-la. Ao ouvir, nos arriscamos a sermos surpreendidos e abalados pelo que ouvimos, muito mais do que por qualquer objeto que possa nos ser apresentado pela visão e pelo tato.
Faz muito sentido. As pessoas não escutam porque escutar é se arriscar. É se abrir para a possibilidade do espanto. Escancarar-se para o mundo do outro - e também para o outro de si mesmo.

Escutar é talvez a capacidade mais fascinante do humano, por que nos dá a possibilidade de conexão. Não há conhecimento nem aprendizado sem escuta real. Fechar-se à escuta é condenar-se à solidão, é bater a porta ao novo, ao inesperado.
Escutar é também um profundo ato de amor. Em todas as suas encarnações. Amor de amigos, de pais e de filhos, de amantes. Nesse mundo em que o sexo está tão banalizado, como me disse um amigo, escutar o homem ou mulher que se ama pode ser um ato muito erótico. Quem sabe a gente não experimenta?

Escutar de verdade implica despir-se de todos os seus preconceitos, de suas verdades de pedra, de suas tantas certezas, para se colocar no lugar do outro. Seja o filho, o pai, o amigo, o amante. E até o chefe ou o subordinado. O que ele realmente está me dizendo?

Observe algumas conversas entre casais, famílias. Cada um está paralisado em suas certezas, convicto de sua visão de mundo. Não entendo por que se espantam que ao final não exista encontro, só mais desencontro. Quem só tem certezas não dialoga. Não precisa. Conversas são para quem duvida de suas certezas, para quem realmente está aberto para ouvir – e não para fingir que ouve. Diálogos honestos têm mais pontos de interrogação que pontos finais. E “não sei” é sempre uma boa resposta.
Escutar de verdade é se entregar. É esvaziar-se para se deixar preencher pelo mundo do outro. E vice-versa. Nesta troca, aprendemos, nos transformamos, exercemos esse ato purificador da reinvenção constante. E, o melhor de tudo, alcançamos o outro. Acredite: não há nada mais extraordinário do que alcançar um outro ser humano. Se conseguirmos essa proeza em uma vida, já terá valido a pena.

Escutar é fazer a intersecção dos mundos. Conectar-se ao mundo do outro com toda a generosidade do mundo que é você." Eliane Brum