21 setembro, 2012

Exames de rotina

A notícia pode vir de repente em um exame de rotina, aberto na página do laboratório na internet enquantose toma  um chocolate quente.
Não era uma doença incurável, não era um drama humanitário, não era nada que alterasse a ordem do mundo. Era só a pequena tragédia de todos nós depois dos 35. Comezinha e cotidiana. A tragédia de um homem comum, com uma vida comum, que sente a primeira fisgada do fim.

No percurso de uma vida, quando temos a sorte de ter uma existência longa, passamos por várias pequenas mortes e renascimentos. É importante que partes de nós morram para que outras possam nascer – ou apenas para que esses pedaços mofados de nossas crenças sobre nós ou da crença de outros sobre nós saiam do caminho. É triste quando alguém é uma coisa só a vida toda – perdendo a chance de acolher todos os outros de si. Quando alguém anda pela vida apertado em uma roupa que nunca lhe serviu direito, mas que foi vestida nele ou nela por seus pais ainda na infância, como se fosse o único modelo que lhe coubesse.

É importante que, em algum momento, de preferência mais cedo do que tarde, a gente descubra que essa roupa não serve – ou que apenas algumas partes servem e outras precisam ser jogadas fora, para que novas possam ser inventadas. É essencial que nos libertemos dos dogmas impingidos sobre nós para podermos criar uma vida que faça mais sentido – e para nos sentirmos livres para recriá-la o tempo todo. O olhar do outro sobre nós, a começar pelo dos nossos pais, às vezes é redenção, em outras é prisão, em geral é ambos.

Por isso me parece que uma vida é mais rica quando morremos e renascemos muitas vezes. Mas esta é a existência psíquica, é o que se passa em nossas porções invisíveis, naquela parte da nossa geografia que não se pode tocar com as mãos. Poucas coisas ou nenhuma são mais assustadoras do que ousar se libertar de um jeito de ser cujo funcionamento conhecemos. Porque ainda que esse jeito nos sequestre o desejo, nos parece mais seguro do que enfrentar o vazio de descobrir formas de viver mais próximas de nossos anseios. Mas, se tivermos essa coragem que anda de mãos agarradas com o medo, nós nos responsabilizamos pelas nossas escolhas, seguimos e criamos e morremos e renascemos.

 A rigor, começamos a morrer desde o nascimento. De fato, nosso declínio físico começa aos 20 e poucos anos, mas esses sinais podem ser ignorados. E são. Por volta dos 40 – um pouco depois, para quem tem mais sorte, um pouco antes, para quem tem mais azar –, recebemos a notícia da primeira morte que não podemos ignorar. A primeira morte do corpo.

 Não é uma mera mudança de hábitos, como médicos e nutricionistas tentam nos convencer em consultas, reportagens e sites da internet.

Corte  as feijoadas, o churrasco, a pizza, o hambúrguer, a batata frita, os pastéis, os bolos, os bolinhos, as tortas, os chocolates. Mas não só. Encerre a possibilidade de renovar a qualquer momento a memória de uma vida de afetos: a receita de bacalhau da mãe , a torta de frango com catupiry que só a sogra sabe fazer, o feijão gordo que a mulher prepara , a noite com o amigo de infância recheada de cumplicidade, chope e frituras.

Um mundo dentro do mundo morreu em um segundo. E a notícia dessa morte nos lembra o tempo todo de que é só a primeira das muitas que virão. “Tenho medo de morrer de repente”, pensamos.  “A vida não dá garantias”....
 Sabemos que é preciso aceitar essa morte, assim como todas que virão, com o excesso de perdas que ela contém. Em geral não se morre de uma vez só, mas aos poucos. E é o corpo que nos ensina a brutalidade dessa verdade, a finitude do físico versus a imortalidade da alma.




09 setembro, 2012

Humano...pobre humano

Toda pessoa não suficientemente realizada em si mesma tem a instintiva tendência de falar mal dos outros.
Qual a razão última dessa mania de maledicência?
É um complexo de inferioridade unido a um desejo de superioridade. Diminuir o valor dos outros dá-nos a grata ilusãode aumentar o nosso valor próprio.
A imensa maioria dos homens não está em condições de medir o seu valor por si mesma. Necessita medir o seu próprio valor pelo desvalor dos outros.
Esses homens julgam necessário apagar as luzes alheias a fim de fazerem brilhar mais intensamente sua própria luz.
Quem tem bastante luz própria não necessita apagar ou diminuir as luzes dos outros para poder brilhar.
Quem tem valor real em si mesmo não necessita medir o seu valor pelo desvalor dos outros.
Quem tem vigorosa saúde espiritual não necessita chamar de doentes os outros para gozar a consciência da saúde própria .
Portanto, cabe as pessoas lúcidas, boas e de bom senso, não dar ensejo para que o veneno da maledicência se alastre, infelicitando e destruindo vidas.
(Humberto Rohden)